jueves, 10 de julio de 2008

A educação na América Latina: direito em risco

A educação na América Latina: direito em risco

As articulações, fóruns, movimentos e organizações da sociedade civil latino-americana e global que estiveram reunidos em Brasília nos dias 8 e 9 de novembro de 2004, vem manifestar aos/às participantes da 4ª reunião do Grupo de Alto Nível da Educação Para Todos (EPT), convocada pela Unesco, realizada na mesma cidade, e às sociedades civil e aos governos de todo mundo, preocupações e propostas com relação aos desafios para o avanço da qualidade educacional. Tais considerações têm como base o entendimento de que a educação é um direito humano fundamental, garantido pelo Estado, e deve ser assumida como política estruturante de um modelo de desenvolvimento comprometido com justiça social, cidadania e sustentabilidade.

* a deterioração da educação na América Latina - A qualidade da educação e do processo de aprendizagem constituem um desafio especial na América Latina, na qual se mantêm intacto um sistema econômico altamente excludente e fonte de profundas desigualdades sociais. A deterioração da educação no continente está refletida na baixa qualidade, na diminuição dos orçamentos de educação em vários países, na precarização das condições de trabalho dos profissionais de educação e no estancamento do acesso à educação. Verificamos um retrocesso que amplia a brecha entre a situação vigente e as metas dos governos e dos organismos internacionais.
Nesse contexto, os sistemas educativos enfrentam inúmeras dificuldades para dar respostas efetivas às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e desigual, não garantindo o acesso devido às diferentes etapas e modalidades da educação, não garantindo a permanência e o direito à aprendizagem para a gigantesca maioria de alunos e alunas, sejam eles crianças, adolescentes, jovens e adultos. Apesar dos avanços com relação ao acesso à educação primária nas décadas passadas na América Latina, persistem graves problemas de acesso ao conjunto da educação pública, em especial, na educação infantil, ensino médio e superior, bem como na educação de jovens e adultos. Além disso, a baixa qualidade da educação reproduz as inequidades e aprofunda a exclusão social, política, econômica e cultural no continente, afetando de forma perversa as populações mais marginalizadas. Além do mais, os indicadores hoje assumidos pelos organismos internacionais não aferem os graves problemas da educação no continente, limitando-se às questões de acesso e não captando permanência e sucesso.
Entendemos que a qualidade em educação é um conceito político, em disputa na esfera pública, que deve ser referenciado nos contextos, necessidades e desafios do desenvolvimento de uma região, de um país, de uma localidade. A qualidade é um processo que exige investimentos financeiros de longo prazo, participação social e reconhecimento das diversidades e desigualdades culturais, sociais e políticas presentes em nossas realidades. Queremos uma qualidade em educação que garanta aprendizagem, gere sujeitos de direitos, inclusão cultural e social, qualidade de vida, contribua para o respeito à diversidade, o avanço da sustentabilidade e da democracia e a consolidação do Estado de Direito em todo o planeta.



O déficit latino-americano nos mostra um desenvolvimento precário da educação: sem alcançar ainda a alfabetização das pessoas adultas e o acesso geral das crianças e jovens no sistema escolar. A América Latina se insere obrigatoriamente no modelo de globalização com um déficit de 10% de analfabetismo adulto e 40% na escolaridade básica.
* O reducionismo da agenda global da educação – A agenda global de educação, a partir da década de 90 vem sofrendo um forte retrocesso. As metas se tornaram mais tímidas, os prazos para o cumprimento foram estendidos (de 2000 a 2015), o financiamento foi limitado e a abrangência se restringiu, estimulando a focalização de políticas públicas, destinadas sobretudo a grupos, países e regiões mais excluídos do planeta, do qual a iniciativa do Fast Track (Via Rápida) – com seus limites e contradições – constitui um perfeito exemplo vinculado a essa lógica . Dessa forma, efetivamente, não estão garantidas condições concretas para o desenvolvimento e consolidação da educação enquanto política pública universal.
Se parte das metas da Dakar (2000) significou um recuo com relação às metas da Conferência Mundial de Educação de Jomtien (Tailândia, 1990), consideramos que as Metas do Milênio cumprem mais uma vez esse papel ao limitarem as metas da educação ao acesso à educação primária obrigatória. As Metas do Milênio deveriam permitir um tratamento mais contextualizado e menos setorial da educação, reafirmando-a como eixo de desenvolvimento, mas ao se limitar ao aceso à educação primária se subordina à lógica do reducionismo da agenda internacional de educação.
* A sobreposição de Planos e Instâncias Internacionais de Educação – Consideramos que existe no cenário internacional um grande, conflitante, incoerente e fragmentário conjunto de iniciativas e planos destinados a melhorar a situação da educação no mundo com suas respectivas metas, dinâmicas e instâncias, das quais uma delas é o Grupo de Alto Nível (High Level Group) de Educação Para Todos (EPT). Somente com relação à educação, estão em vigor na América Latina seis iniciativas com metas referentes à educação. Tal situação gera dispersão de esforços e recursos, sobreposição, falta de efetividade e transparência, desarticulação nos níveis nacionais e inúmeras dificuldades para a participação da sociedade civil, entre elas, o acesso a informações estratégicas.
* Via Rápida (Fast Track) – A iniciativa Via Rápida vai à contramão do entendimento da educação como direito universal obrigatório e gratuito, ao focalizar políticas e programas para os grupos mais vulneráveis da população, a partir de uma concepção compensatória e não como um direito de todos e todas. Por outro lado, o financiamento da educação não pode estar à mercê dos organismos financeiros internacionais como o Banco Mundial, instituição promotora das políticas de ajuste fiscal que influencia os governos nacionais a retirar recursos das políticas sociais e, em especial, da educação. Consideramos que a iniciativa Via Rápida constitui um retrocesso em relação à Iniciativa Global, pactuada na Conferência Mundial para Todos (Jomtien, 1990). Nos preocupa que esta iniciativa seja acolhida com centralidade na estratégia EPT pela cooperação internacional, em particular pela Unesco.



* A América Latina na periferia da agenda global – A América Latina vem ocupando um lugar cada vez mais periférico na agenda global de educação, expresso nas diferentes reuniões internacionais. Isso decorre, em grande parte, do empobrecimento da agenda global, ao restringir as metas de educação ao acesso à educação primária, sobretudo, de grupos mais vulneráveis, dos “pobres entre os mais pobres”, dos quais fazem parte alguns dos países latino-americanos, segundo os organismos internacionais. Esse lugar “periférico” decorre também da falta de reconhecimento explícito do impacto nefasto das políticas de ajuste fiscal no continente por parte dos organismos internacionais. Tais políticas são reprodutoras de desigualdades sociais, da baixa qualidade e das limitações de acesso da educação pública na América Latina.

* As políticas econômicas e de ajuste fiscal como obstáculos ao direito à educação – A limitação do financiamento continua sendo um grande obstáculo para a melhoria da educação no mundo todo e, particularmente, na América Latina, ainda subordinada às políticas de ajuste fiscal, ao pagamento da dívida externa e à geração de superávits primários. Não podemos esquecer que o discurso predominante nas reformas educativas nos anos 90 no continente, levadas adiante pelos Estados Nacionais com apoio e orientação do Banco Mundial, pregava que não seriam necessários mais recursos para educação pública, mas somente o uso mais eficiente dos existentes. Porém, inúmeros estudos internacionais e nacionais, inclusive no âmbito da Educação para Todos, apontam a urgência de mais recursos para a educação pública como condição para o salto de qualidade e acesso e para o cumprimento das demais metas da Educação para Todos. Entendemos que os organismos internacionais ainda se omitem em fazer a crítica explícita às políticas de ajustes fiscais como obstáculo à qualidade e ao exercício do direito educacional para a maioria da população.
* Educação como Serviço e Mercadoria – os acordos internacionais de comércio (GATS, Tratado de Livre Comércio e a ALCA) comprometem o direito à educação, ao tratá-la como mercadoria, desresponsabilizando os Estados Nacionais e incentivando a sua comercialização no mercado mundial. Tal situação transforma o cidadão em mero consumidor, comprometendo assim a consolidação de um Estado Social de Direito, fundamentado na democracia e na cidadania.
* A precarização das condições de trabalho e de vida dos/das profissionais de educação – Ao longo das últimas décadas, as condições de trabalho e de vida dos/das profissionais de educação sofreram forte impacto negativo, com a queda acentuada dos níveis salariais, diminuição de benefícios, processos de contratação com base em tercerização, precarização da situação dos ambientes escolares, e fragmentação das políticas de formação inicial e continuada. Tudo isso contribui para o quadro de baixa qualidade da educação na América Latina.
* Participação social como direito e base da transformação – uma educação de qualidade para todos e todas somente é possível com a participação da sociedade para além da comunidade educativa, inclusive considerando como fundamental o envolvimento de crianças, adolescentes e jovens. Uma participação que não se restringe a uma consulta com organizações “amigas”, a mera formalidade, a rituais para legitimação de propostas já fechadas, mas comprometida com a efetiva participação da sociedade civil em sua diversidade política, na qual o conflito é inerente. É necessário rever os processos, instâncias e demais procedimentos que permitam a maior politização da participação social tanto nos níveis local, nacional e internacional, garantindo uma gestão democrática em todo o sistema educativo. Para isso é fundamental a transparência e a disseminação de informações estratégicas que permitam uma participação mais qualificada.


PROPOMOS QUE O GRUPO DE ALTO NÍVEL ASSUMA EM SUAS RESOLUÇÕES:


* a educação como direito humano fundamental, responsabilidade do Estado e eixo de uma política de desenvolvimento comprometida com a justiça social.
* resgate do sentido ampliado de Educação para Todos da Conferência de Jomtien, comprometido com o direito à educação e à aprendizagem ao longo de toda a vida e no conjunto dos diversos espaços educativos que constitui o habitat humano, revertendo o processo reducionista das metas de educação.
* tomada de medida urgentes frente ao reconhecimento do não cumprimento das metas no prazo estipulado, de modo a reverter este processo.
* a revisão e articulação de iniciativas, políticas e planos internacionais, sobretudo na América Latina, no sentido de uma maior efetividade, transparência, participação e somatória de esforços de governos, garantindo o envolvimento ativo da sociedade civil.
* a necessidade urgente de reconhecer as políticas de ajuste fiscal como fonte de desigualdade social e obstáculo para o avanço da qualidade em educação e a importância de encontrar outras alternativas.
* o aumento urgente dos investimentos em educação pública por meio da revisão dos termos da dívida externa; da taxação da circulação do capital financeiro internacional; da taxação do comércio de armas; do combate efetivo à corrupção e do estímulo às políticas nacionais de tributação progressiva e redistributiva.
* a retirada urgente da educação da pauta de negociação dos acordos internacionais e bilaterais de comércio.
* a regulamentação do setor privado de educação.
* a recomendação para que os países orientem o financiamento educacional no sentido de reconhecer e responder às diferentes necessidades nacionais e locais e aos desafios da equidade (gênero, raça, etnia, situação econômica, educação do campo, portadores de necessidades especiais, orientação sexual etc) como condição para garantir a qualidade de educação.
* o aprimoramento da participação social nos processos e instâncias internacionais de monitoramento, formulação e financiamento de planos e iniciativas, garantindo o acesso à informação estratégica nos diferentes idiomas.
* o resgate da função social d@s educador@s, valorizando a profissão, sobretudo com relação à piso salarial, carreira profissional, articulação e aprimoramento das políticas de formação inicial e continuada e participação efetiva d@s profissionais na definição das políticas públicas.



Brasília, 9 de novembro de 2004
Fonte: ANDES

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